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7 de Abril 1999

DIÁRIO "MULHER"
por Estêvão J. Filmão

Esta aqui extraio-a do meu Diário de terreno. Não sei se uma contribuição deste tipo será "útil" no contexto deste NotMoc, ou se me limito só a transmitir perplexidades. A vocês de julgar!

Ao desembarcar do carro no dia 12 de Março de 1999 em Nampula, fui dar ao Hotel Lúrio, escolhi um quarto, paguei a diária e instalei-me. Terminado o banho dei uma volta pelos aposentos. Acendi um cigarro. Fumei um trago. Apaguei. Estava nervoso. Procurei um jeito de me acalmar e adormeci (tal era o cansaço) sobre uma página sonolenta da revista florestal na teimosa vontade dos últimos preparativos para o trabalho de terreno. No dia seguinte, sábado 13 de Março de 1999, acordei sobressaltado. Ouvia-se do hotel um ruído estranho, gritos de alegria também.

- "O que é isto"? - perguntei de mim para mim.

Corri as cortinas do quarto. Um e outro transeunte apressado. Nada mais. Ao descer para o salão encontrei-o repleto de gente. Através da janela viam-se agora carros e mais carros a chegar e estacionar nas imediações do hotel: era o dia do encerramento de uma conferência qualquer do Partido. Sendo o hotel propriedade do Partido, o brinde pelo encerramento deveria passar-se "normalmente" aqui, sem que fosse mesmo necessário dar qualquer satisfação aos hóspedes.

A festa tinha começado. Acomodei-me num canto do salão, fingindo estar a seguir algum programa interessante na televisão, até que ficamos todos confundidos hóspedes e festejantes: uns comiam e bebiam e outros assistiam. Ainda apareceu o habitual grupo folclórico de Tufo constituído só de mulheres e crianças para abrilhantarem a "recepção". Mas nenhum tostão foi pago ao hotel (soube mais tarde), o que talvez explica o seu estado decrépito apesar dos preços de fortuna exigidos por cada quarto.

Depois de uma saída, regressei ao hotel no fim da tarde e apeteceu-me uma cerveja. Dirigi-me ao bar. Falei com a servente do balcão, escolhi uma mesa e sentei-me. Abri o maço que acabara de adquirir e acendi um cigarro. Na mesa ao lado estava um senhor bebendo água mineral. Aparentava ser um hóspede habituado à casa pela maneira directa como se dirigia às serventes do bar. A cerveja chegou e fui servido no copo. Instantes depois apareceram dois homens completamente ébrios e ocuparam uma mesa. Loquazes. Um deles porém, por sinal o mais corpulento, achou que estava melhor na mesa que eu ocupava, talvez para tirar proveito da eficiência dos serviços da servente que não parava de rondar a mesa para ver se não me faltava nada. É óbvio: eu tinha um sinal qualquer denunciando a minha proveniência da capital do país. Ele quis sentar-se insistindo em querer fazer conversa. Não o deixei porque mostrei-me indiferente a tudo o que ele me dizia. Com efeito, ele havia pedido, com aquele calor abrasador, dois duplos. Duplos de gin para o amigo que com ele entrara. Por isso voltou e sentou-se na sua mesa de origem.

Até que de repente irrompeu no bar uma senhora alta, esbelta e bem trajada com roupas "africanas", clamando desenfreada e entusiasticamente que as Mulheres tinham ganho porque uma mulher (que aparentemente todos conheciam) acabara de ser eleita Primeira Secretária do Comité da cidade, segundo o que ela mesma teria prometido meses atrás. Seguiram-se "vivas" à Mulher Moçambicana. A recém-chegada abraçou longamente as outras mulheres (serventes) e a euforia a todas inebriou. A "contenteza" contagiou as mulheres presentes. Também despertou algum cinismo nos homens presentes. No entanto, a senhora esbelta e bem trajada de há momentos desapareceu pouco depois no interior dos aposentos - entrando pelo balcão adentro onde estavam as serventes, depois de ter desafiado os dois homens ébrios:

- "Agora é que vocês homens vão ver como é que nós as mulheres iremos organizar as coisas da cidade. Vocês homens já provaram que não conseguem nada. Vocês estão sempre tristes, aliás, todos os homens".

Assim interpelado o senhor corpulento assentiu dizendo que ele próprio havia já dito que a mulher que for a eleita iria ganhar, só que isso tinha acontecido por causa de um outro indivíduo, cujo nome era também familiar a todos. É nesse momento que uma das serventes comentou dizendo que as mulheres "ganhavam sempre" - as palavras faziam-se acompanhar de gestos com as mãos e com as ancas, evocando o "acto". O deslize da política para o sexo fez-se quase automaticamente, como que a querer mostrar uma correlação inequívoca entre os dois. Concomitantemente, os dois homens pediram que lhes fosse servida comida, porque era preciso comer enquanto se bebe, justamente porque as mulheres "ganham sempre", enfatizando com um piscar de olhos os últimos termos da frase. Foi-lhes servida comida. Muita comida e mais duplos de "gin". Então fiz assim a primeira síntese das lições aprendidas: política, sexo (isto é, Mulheres), comida e bebida têm relação entre eles.

- "Toda a gente sabe que o "fulano" é que fodia com ela - continuou o corpulento - Até porque aquele miúdo ali, o vendedor ambulante, sabe… Ó miúdo, anda cá. Quem é que ganhou a cadeira de Primeiro Secretário do Comité da cidade?"
- Foi a "Fulana"! - respondeu o miúdo que entrara com as coisas que o "monhê" lhe dera para vender.

Vi então que a eufórica conversa deslizara exclusivamente para sexo e fodas, exaltando-se desempenhos e comentando-se ligações. Apareceram depois mais mulheres, acompanhadas, mas como que surpresas de algo não ousaram permanecer no recinto e saíram logo, mas a conversa continuou. Apareceu depois um outro senhor na minha mesa, depois de ter saudado efusivamente os dois homens de que falei. Ele trazia na mão um jornal Savana e comentou dizendo que havia muitos problemas no país. Comentou o "caso" da cabeça cortada retomado ali no jornal.

Mas chegada a hora de eu próprio pagar a minha "média" entreguei uma nota de 50.000,00 Mts. A servente lamentou a falta de trocos, mas pegou na nota e foi procurá-los algures, fora do bar. De regresso reteve unilateralmente 5.000,00 Mts dizendo-me que ela devia beber uma fanta, sem se preocupar com o meu assentimento ou não. O episódio foi reportado pelos dois homens que nisso viram a prova de que as mulheres "ganham" sempre. Creio que pude, pela primeira vez, entender os diferentes registos e significados do verbo "ganhar". Sorri.

Saí pouco depois deixando atrás de mim os dois senhores, mais o terceiro. O primeiro que eu vira bebendo água mineral já tinha partido. Mas por várias vezes os nossos olhares "cúmplices" se haviam encontrado no decorrer da conversa. Silenciosos. Estupefactos!

No salão de festas eu reconheceria um pouco depois, entre os convidados ou fazedores da festa, o senhor corpulento e baixinho e o seu amigo. "Também eles fazem parte dos finos" - concluí. De longe, na mesa de honra mostraram-me ainda uma senhora de altura mediana, trajada de preto. Era a mulher que acabara de ganhar as eleições dentro do partido. Não consegui no momento encontrar um pretexto para me aproximar e falar com ela. Por isso, ignoro tudo a seu respeito: qual é o seu mérito ou demérito? Quem são os seus defensores e os seus detractores? E mais ignoro ainda se a conversa travada tem alguma relação com o seu desempenho. Mas o que é certo, o que é facto, é que é ela a Primeira Secretária Eleita do Comité da cidade - e não outra pessoa - sobrepondo-se assim aos seus concorrentes masculinos mais directos. E talvez dizer também que ela desperta a minha curiosidade e alimenta o meu imaginário. Ela é símbolo. Não só pelo marco político em que ela se tornou mas também porque, culturalmente, evoca o regresso das "Apyamwene" (Rainhas) de outrora que, no seu tempo, se fizeram respeitar mais como conselheiras do poder - e nunca em postos cimeiros como agora. A este propósito, não é produtiva a questão de saber se ela é ou não originariamente makhuwa. O ponto é que se ela for bem sucedida nas suas novas funções, talvez o futuro de Moçambique começasse em Nampula. E se falhar, nada terá mudado debaixo do sol. Resta apenas desejar que o seu "feitiço" não se vire contra ela própria!

Tenho dito.

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