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n° 76 7 de Abril 1996 Maputo

 
Edição especial dedicada ao tema da mulher moçambicana:

  1. O 7 DE ABRIL NA IMPRENSA
  2. O DIA 7 DE ABRIL E AS FLORES DA HIPOCRISIA
  3. SENHORES DO SEU NARIZ: AMOR, PODER E VIOLÊNCIA
  4. O ABORTO E O DIREITO DE CONTROLAR O PRÓPRIO CORPO
  5. GÉNERO E RIQUEZA NO MOÇAMBIQUE RURAL


 3.  SENHORES DO SEU NARIZ: AMOR, PODER E VIOLÊNCIA
     por Paula Meneses e Wenke Adam

A partir da segunda quinzena de Janeiro deste ano, estalou na imprensa nacional uma contenda verbal sobre a violência doméstica, despoletada por uma entrevista à Drª Maria Leonor Joaquim, presidente da Associação Moçambicana das Mulheres de Carreira Jurídica (AMMCJ), numa emissão do telejornal da TVM.

Vários dos debatantes, pessoas e organizações que a seguir se pronunciaram sobre o assunto tinham interpretado a Drª Joaquim como afirmando que as 'sovas' que as mulheres recebiam dos maridos eram um acto de amor. A impressão que ficou na opinião pública era que a AMMCJ tinha feito uma investigação sobre o assunto para chegar a essa conclusão, e que portanto condescendia com a violência doméstica. Isto provocou escândalo maior, e a AMMCJ e a Drª Joaquim foram objecto duma série de protestos e até de piadas ridiculizando o assunto. O Domingo chegou a publicar um artigo com o título "Carícia leva à prisão" onde afirma que um estudo de juristas moçambicanas chegou à conclusão que a agressão dos homens a mulheres em Moçambique pode ser vista como manifestação de carinho.

Em 26 e 27 de Janeiro o Notícias publicou na íntegra (em duas partes, na rubrica "cartas dos leitores") um esclarecimento da presidente da AMMCJ, onde informa entre outras coisas sobre o seguinte:

  • Em Dezembro de 1995 a AMMCJ depois de tomar conhecimento duma série de casos grotescos de assassinatos de mulheres pelos seus respectivos maridos, onde os agressores não tinham sido penalizados ou estavam apenas indiciados por "agressão física", emitiu um comunicado condenando publicamente esses factos, que foi enviado ao Notícias, Savana, Domingo, TVM e RM. Apenas a Rádio Moçambique publicou o comunicado.
  • A seguir, e depois de ter sido contactada por familiares de uma das malogradas vítimas, a AMMCJ enviou uma carta ao Presidente da República, com conhecimento do Primeiro Ministro, Presidente do Tribunal Supremo, Procurador Geral da República e dos órgãos de informação, solicitando que o infractor fosse prendido e responsabilizado pelo crime. Mais uma vez, apenas a Rádio Moçambique difundiu a carta.
  • A TVM solicitou filmar uma entrevista com a presidente da AMMCJ, onde ela falou extensamente sobre a violência doméstica, explicando as insuficiências do Código Penal em vigor [desde 1886, cento e dez anos] e sugerindo medidas para que as mulheres possam ter acesso à protecção contra os maus tratos que a Constituição declara para todos os cidadãos. No caso da mulher rural, a Drª Joaquim constata que nas normas tradicionais a mulher recebe bofetadas sem ter consciência de que isso constitui violência doméstica, porque foi ensinada de que se o homem não a bate de vez em quando não a ama. Esta situação poderia ser ultrapassada através da educação legal da mulher, que passaria a conhecer os direitos constitucionais que lhe assistem. Informou também que a AMMCJ pretendia em 1996 realizar um estudo sobre a violência doméstica.
  • Apesar de ter feito em total três sessões de entrevistas com a Drª Joaquim, a TVM difundiu apenas breves extractos da conversação no Telejornal do 10 de Janeiro. Sacadas fora do contexto original, os teleespectadores tiraram as conclusões que entenderam das palavras da presidente da AMMCJ.

Neste debate, destacam-se como questões centrais:

  • Com que fim é perpetrada a violência doméstica sobre a mulher?
  • A violência física que é praticada com "boas intenções" constitui uma violação dos direitos humanos?

  • O conceito de violência é uma construção cultural, i.e., aquilo que para a sociedade "moderna" constitui violência, pode não ser considerado como tal nas sociedades "tradicionais" ("nossa sociedade")?

Esta última questão poderia ser discutida na extensão de outro tema actual, a da dupla administração: para além da esfera jurídico-legal, como é sancionada a violência física em outros espaços de normatividade social (família, comunidades religiosas, bairro, comunidade rural...)?

A violência constitui um componente importante do processo de adestramento das mulheres para a sua subordinação ao homem (quando a autoridade e as decisões são compreendidas como sendo restritas à esfera masculina); outros dos factores apontados que levam à violência são a crescente desigualdade económica entre os homens e as mulheres, o próprio ideal masculino de dominação, firmeza e honra, e finalmente a utilização da violência na resolução de conflitos pessoais. A violência contra a mulher não é parte integrante do carácter do "macho", mas resulta de normas de comportamento socialmente construídas.

Como refere N. Bikha (Notícias, 28/3), "A violência no casal é praticamente unidireccional, na direcção, é claro, da mulher como vítima e tendo o homem como instrumento/sujeito activo principal".

No entanto, numa emissão do Magazine da Mulher na TVM (Fevereiro), foi proferida uma condenação aberta da violência doméstica, ao mesmo tempo que se teceram considerações sobre as agressões físicas do marido para com a esposa, no sentido de educá-la e de levá-la a tomar o comportamento que se considera correcto.

Este exemplo é dos mais reveladores quanto à natureza da violência como forma de dominação. O "comportamento correcto" é definido segundo os parâmetros da autoridade masculina que, ao ser desrespeitada, acarreta uma sanção "educativa".

Para além das mudanças legais necessárias para desincentivar a violência sistemática na esfera familiar (vide N. Bikha), devemos ter consciência de que só ao desafiar as relações de dominação entre os sexos, esta questão será resolvida.

Da forma como se desenvolveu o debate público à volta das declarações da presidente da AMMCJ, pode-se também tirar algumas conclusões sobre a manipulação da informação nos órgãos de comunicação social do País.
 


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