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7 de Abril 1998

Ideologias Naturalistas e as Teorias Sobre a Inferioridade da Mulher
por Paula Meneses

Por ser mulher e me dedicar a pesquisas na área do biológico e do social tenho experimentado frequentemente os efeitos da aplicação de modelos estereotipados que utilizam aspectos da área da pesquisa biológica para justificar atitudes de flagrante sexismo e discriminação. De facto, em Moçambique, como um pouco por toda a parte, a manutenção e mesmo a legitimação da diferenciação política defendida nos círculos do poder recorre com certa frequência a "ideologias naturalistas" para justificar situações de gritante desigualdade de género. A utilização de argumentos de carácter pseudo-científico transparece de facto a vários níveis, constituindo um dos elementos centrais utilizados para manter e reproduzir as hierarquias de dominação e controle sobre a mulher. Mas quais serão realmente os "factos de natureza biológica" que originam estes comentários? Lugares comuns, ou verdades cientificas assentes em estudos de natureza neuro-biológica? Mas qual a origem desta argumentação dita "de carácter científico"?

"O homem e mais corajoso e enérgico que a mulher, e possui também um génio mais inventivo...A mulher parece ser diferente do homem...mostrando mais ternura e menos egoísmo". Estas palavras foram escritas por Darwin - o "patrono" da teoria evolutiva por via da selecção do mais forte - remontam há mais de um século e tem perpetuado uma imagem que se tornou clássica: O homem como agressor, a mulher como aquela que alimenta e assiste. Na opinião de Darwin, estas qualidades de género estavam presentes desde a aurora da humanidade.

Darwin também acreditava que os homens eram naturalmente mais inteligentes. A superioridade da inteligência masculina, em sua opinião, derivava do facto de os jovens terem de lutar entre si para ter acesso às suas potenciais parceiras femininas. Porque os nossos antepassados masculinos teriam tido necessidade de defender as suas famílias, de caçar para a sua subsistência, de atacar os seus inimigos, de produzir armas, naturalmente que teriam de possuir melhores qualidade mentais, especialmente em termos de observação, raciocínio, invenção ou imaginação. Assim se arreigou a ideia de que através da competição entre homens e pela sobrevivência do mais forte, a inteligência evoluiu apenas entre os machos!

Um Adão agressivo e inteligente, uma Eva simples e gentil - as evidencias de uma desigualdade em termos de género eram mais que óbvias para Darwin. A intelectualidade vitoriana (do século passado em Inglaterra) era constituída maioritariamente por homens! Simultaneamente, P. Broca, neurologista francês que se dedicou também a estudos sobre diferenças entre os sexos, confirmava a hipótese da inferioridade intelectual feminina. Depois de calcular o peso do cérebro de mais de 100 homens e mulheres autopsiados em hospitais de Paris, este cientista escrevia em 1861 "as mulheres são, em media, menos inteligentes que os homens, diferença esta que convém não exagerar mas que para todos os efeitos é real". Todavia Broca esqueceu-se de ter em linha de conta o tamanho mais reduzido, em média, da estatura feminina em relação à altura. Para a época, era um facto assente que as mulheres eram seres intelectualmente inferiores.

Este credo seria abalado seriamente por vários trabalhos de pesquisa, muitos dos quais levados a cabo por antropólogos. "É o meio quem modela a personalidade, e não algo derivado do código genético", defendia Margareth Mead. "Retirem-se alguns ornamentos culturais aos homens e mulheres e nós teremos o mesmo animal; é a sociedade quem é responsável por fazer crescer as mulheres como tal, que faz as mulheres actuar como mulheres e os homens como homens".

O desenvolvimento de estudos na área da biologia e antropologia, especialmente de embriologia e genética, tem conduzido ao esclarecimento de certos aspectos ligados à origem e diferenciação por sexos. Hoje é evidente que existe uma diferença cromossómica entre os sexos, a qual se estabelece no cérebro humano durante o desenvolvimento embrionário do feto. Quando um ovo é fecundado, o embrião não tem órgãos masculinos ou femininos. Somente a partir da sexta semana ocorre uma ligação genética e os cromossomas direccionam as gonadas para o desenvolvimento dos ovários ou testículos. Assim, as hormonas "sexuam" o cérebro do feto. É hoje opinião corrente entre os cientistas que será nesta altura que a arquitectura do cérebro actua decisivamente na criação de diferenças de género que mais tarde se tornaram notórias na vida exterior do ser humano. Mas existirão realmente diferenças entre homens e mulheres a nível de organização cerebral que postulem a inferioridade de um dos géneros?

Ao responder a esta questão temos de ter em mente que existem mais diferenças dentro de cada género (masculino ou feminino) do que existem realmente entre os géneros. E a prova desta questão está patente na diversidade das nossas distintas heranças culturais, na medida em que durante muitos séculos em várias sociedades à mulher foi negada a oportunidade de se tornar um activo membro da esfera pública, enquanto se cultivava a ideia do génio masculino. Nos últimos anos tem emergido uma outra imagem da mulher, fruto de toda uma luta dos movimentos sociais desde os anos 60.

O desafio constante das mulheres às normas e valores patriarcais resultou na procura desesperada, por todo um sector masculino, de argumentações para tentar inverter este processo. Não é assim estranho que hoje se justifique a falta de emprego nos países desenvolvidos ocidentais pelo facto de as mulheres na sua maioria terem um emprego e uma participação activa no orçamento e dinâmica familiar.

Tenho plena consciência da existência de diferenças biológicas presentes e identificadas entre homens e mulheres a nível de complexidade cerebral. Por exemplo, vários estudos realizados referem que as mulheres são melhores oradoras que os homens, que lhes é mais fácil articular ideias e expressá-las de modo coeso e objectivo. Os homens, em geral, realizam-se melhor na área da matemática e da música. Outro dos componentes em que as mulheres excedem os homens relaciona-se com o seu poder de intuição. Este facto tem sido explicado como resultante da necessidade de as mulheres protegerem os seus filhos, e consequentemente terem de simultaneamente utilizar e conectar vários circuitos de informação - visual, auditiva, táctil e olfacto. Sim, os sexos não são idênticos, mas complementam-se, e nenhuma destas diferenças incapacita qualquer um dos géneros.

De facto, com este breve texto gostaria apenas de reafirmar uma verdade há muito axiomática: cada género possui os seus talentos próprios. Mas sejamos claros - o recurso a explicações pseudo-científicas para justificar situações de desigualdade reflecte sim um medo irreflectido de todo um sector da sociedade que receia perder parte dos seus privilégios em beneficio de um outro grupo que sempre considerou inferior. E se esta luta tem levado ao ascender, pelas mulheres, a lugares anteriormente exclusivos dos machos - que melhor explicação encontra do que esta demonstração empírica de que se trata apenas de discurso e que na prática, a mulher é que possui as mesmas capacidades de operacionalidade?

Na realidade, o recuperar do discurso que enaltece o mito da perpétua diferença e desigualdade entre o macho e a fêmea pretende sim esconder uma vontade irracional de parar e inverter o processo de emancipação feminina, actuando simultaneamente como um termómetro para avaliação do nível dos desafios que cada dia são colocados pelas mulheres ao aparelho do poder. Assim, estas relações de subordinação que muitos querem ver perpetuadas não são realmente parte da nossa natureza física, mas sim parte integrante da estrutura conceptual da nossa sociedade, a qual esta assente em pesados princípios de estratificação social.

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