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n° 99 7 de Abril 1997 Maputo

Edição Especial do 7 de Abril de 1997


"Inferno no Paraíso": fotonovela e estereótipos
por Maria José Arthur

Em Junho de 1996 saiu o primeiro número (e até ao momento o único) da colecção Felicidade, com uma fotonovela intitulada "Inferno no Paraíso", com uma tiragem de 10.000 exemplares.

Personagens & história

  • Marinela - estudante de medicina, filha de um rico empresário. Namora um colega de faculdade de origem pobre e esconde esse facto à família, por saber que as expectativas familiares relativamente ao seu casamento são outras. Esperam que escolha um indivíduo de famílias ricas (cheio da "mola"). Tem um irmão autoritário a quem tenta por vezes desafiar e que age como guardião da sua conduta e, dessa maneira, da honra da família.
  • Sara - namorada do irmão de Marinela e grande amiga desta. Quando está em causa a sua relação amorosa, não hesita em trair as confidências de Marinela sobre o seu amor clandestino.
  • Faizal - estudante de medicina, originário do norte do país, é de famílias pobres e vive em casa de um padrinho que hospitaleiramente o recebeu. Está apaixonado por Marinela o que o leva a deixar de lado Manita, filha do seu padrinho. Apesar de ter tido um caso amoroso com esta, justifica a sua atitude dizendo que "nunca prometeu casamento".
  • Manita - personagem ostensivamente modelada para encarnar a "má da fita": mulher traída que se vinga procurando lograr o plano de fuga dos dois enamorados.
  • O pai - empresário rico que se exalta facilmente, com preconceitos contra pessoas do norte e que não quer que a filha se case com alguém sem posses. Responsabiliza a esposa pela (má) educação que deu à filha.
  • A mãe - mediadora dos conflitos entre pai e filha, a quem prega resignação perante a decisão do pai.
Situações & momentos
  1. Manita entra no quarto de Faizal e este diz-lhe que não tem tempo. Ela desconfia de que existe outra mulher, mas Faizal sossega-a dizendo que a ama.
  2. Sara, receando desagradar o namorado, relata-lhe as confidências de Marinela. Faz lembrar as convicções do professor Hutten, personagem de K.A. Porter no romance "A Nave dos Loucos": "A lealdade de uma mulher não deve nem pode ter nunca por objecto o seu próprio sexo, mas sim os seus homens - o pai, o irmão, o filho, e por fim, acima e antes de todos, o marido".
  3. Marinela e o irmão discutem: em causa está o envolvimento com Faizal, "matreco" de uma classe social inferior. A discussão envolve o pai que entretanto chega. A mãe tenta intervir e é acusada de ter educado mal a filha.
  4. Discussão final de Faizal com o irmão da sua amada, tentando impedir um encontro marcado entre eles. Marinela aparece, interpõe-se e acaba por cair das barreiras.
  5. Cena final comovente passada num quarto de hospital. A eminência da morte funciona como redentora das divergências e o amor é mais forte que os interesses familiares.
Está assim delineada a trama central desta fotonovela, um exercício de aplicação da forma comercial "amor, intriga e dinheiro".

Algumas críticas a este trabalho apontam a ausência de qualquer intenção educativa. Outros defendem que uma fotonovela não deve ter outros compromissos que não sejam a intensidade dramática. Embora pessoalmente esteja mais de acordo com a segunda posição, o trabalho é uma desilusão a esse nível. Encontramos um conjunto de personagens e situações estereotipadas, que pouco nos elucidam sobre a diversidade e complexidade da condição humana. Os caracteres presentes são medíocres, sem coerência e com total ausência de grandeza:

  • Marinela é uma menina tola que não tem força para lutar pelo que quer, escolhendo o caminho fácil da fuga para poder ficar com Faizal.
  • Faizal é um tipo sem respeito de qualquer espécie pelos sentimentos dos outros: apesar de ter sido tão bem recebido pelo padrinho, dorme com a filha deste no quarto que lhe destinaram, sabendo que isso magoaria o seu benfeitor; depois de ter correspondido ao amor de Manita, começa a andar com Marinela sem primeiro acabar a ligação anterior. Quando não pode esconder mais a situação, rompe com Manita sem qualquer contemplação.
  • Sara aparentemente é uma menina rica que quando se precisa dela está em casa a ler. É uma daquelas "amigas" que se devem evitar: quando os seus interesses estiverem em causa não hesitará em trair quem quer que seja.
  • Ricardo, o "irmão" - menino rico, engenheiro com escritório montado, controla e vigia a irmã e faz queixa dela ao pai. Não tem nenhum traço de generosidade no seu carácter.
  • Manita - talvez o personagem mais consistente: menina pobre que percebeu ter sido "usada" e que procura vingança pelos meios ao seu alcance.
Neste cenário o que fica? Um enredo fraco e vulgar, personagens tolas e sem espessura nenhuma (afinal quem são elas? o que buscam nesta vida?), e muitos, muitos, muitos preconceitos sobre a mulher. Veja-se só o lugar que têm os personagens femininos jovens nesta história. A ter tido impacto junto ao público, este seria mais um canal de socialização de massas sobre os papéis que cabem à mulher, ao homem, e os valores nas relações homem/mulher. Se uma obra literária não deve ser criticada pelos valores morais que difunde, o caso já é diferente quando a fraca qualidade da mesma a converte numa divulgação panfletária de estereótipos retrógrados e humilhantes para a mulher.

Se a fotonovela pode ser considerada um género literário menor, de entretenimento, subsiste ainda a questão de ser lícito divertir e ocupar o público com imagens que passam valores que nos ofendem profundamente, por mais uma vez aprisionarem a mulher em papéis passivos e degradantes que contribuem para discriminá-la ainda mais.
 


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