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n° 99 7 de Abril 1997 Maputo

Edição Especial do 7 de Abril de 1997


Terra e Género
por Margarita Mejia

Moçambique possui características especiais que devem ser tomadas em conta quando se pretende realizar uma análise da dimensão de género da posse da terra, a qual inclui as relações de poder existentes, como determinantes no acesso e segurança do uso e controlo dos recursos.

Como primeiro aspecto, existe em Moçambique uma grande diversidade em termos sociais, culturais e ambientais nos aspectos étnicos e linguísticos que se juntam à diversidade na qualidade dos recursos, dando origem a diferentes sistemas de linhagem e normas costumeiras que se constroem de acordo com a realidade local e portanto participam desta mesma diversidade.

Completando o cenário, o país tem atravessado nos últimos 30 anos períodos históricos com grandes transformações nas relações de poder: a Colonização; a Independência, guiada por um sistema socialista de economia centralizada; uma terrível guerra de desestabilização; o estabelecimento do Programa de Reajustamento Estrutural para dar entrada a uma economia de mercado acompanhada de um processo de descentralização e o multipartidarismo. Assiste-se pois, concomitantemente, a mudanças na posse e uso da terra e nas relações de género, principalmente no que diz respeito ao acesso e controlo deste recurso fundamental.

Durante a época colonial assistiu-se ao deslocamento do campesinato de origem africana para terras marginais dando assim origem às grandes machambas coloniais, localizadas nas terras mais férteis, nos climas mais moderados e com acesso à água; a produção era destinada à exportação. No sul do país, onde a agricultura intensiva não jogava um papel tão importante, e devido à vizinhança com a África do Sul, a colónia estabeleceu a venda da força de trabalho para exploração das minas de ouro. A estratégia de produção, que teve a tendência de utilizar os chefes de família em trabalhos forçados ou como mão-de-obra barata, converteu a mulher, muitas das vezes, na única responsável pela manutenção da família, em terras pouco produtivas, levando a agricultura ao nível de subsistência.

Este isolamento da mulher foi acompanhado por formas de subordinação diferentes segundo as relações de género estabelecidas nos diferentes sistemas consuetudinários: matrilinear no norte, onde a mulher tem acesso à terra mas não toma decisões sobre a produção de rendimento da sua machamba; a patrilinear no sul, onde só acede à terra através do casamento, sendo do marido o controlo sobre esse recurso; em caso de viuvez é através dos filhos que assegura o acesso a uma machamba.

Com a Independência, a terra passa a ser propriedade do Estado. Contudo, não há redistribuição das terras férteis, e a antiga machamba colonial converte-se em machamba estatal. Existe, sim, uma tentativa frustrada para modificar de forma radical tanto os aspectos de uso e aproveitamento do solo como as relações de género, através da participação de mulheres e homens na produção com a criação das Aldeias Comunais.

A guerra de desestabilização surge como uma luta pela imposição de modelos dominantes de desenvolvimento. Ela produz o êxodo rural e consequentemente uma situação de emergência e dependência alimentar. O homem, definido socialmente como captor de receitas, emigra à procura de emprego nos países vizinhos; a mulher fica encarregue das crianças e idosos, deslocada, sem acesso à machamba, na sua maioria nas zonas peri-urbanas à procura de segurança, com estratégias frágeis de sobrevivência, criando dependência em relação aos programas de emergência. Toda esta situação se vê agravada por um forte período de seca que assola o país.

Com os acordos de paz assinados em 1993 o país entra definitivamente no modelo de economia de mercado que é o vitorioso a nível mundial. Já premonitoriamente se tinha estabelecido o Programa de Reajustamento Estrutural que daria as bases para o estabelecimento do Programa de Reabilitação Económica cuja prioridade é o aumento das exportações para o equilibro da balança de pagamentos. Consequentemente aumenta o nível de desemprego e a emigração da mão-de-obra masculina para os países vizinhos e surge a economia informal a nível de subsistência diária, maioritariamente praticada por mulheres a partir de produtos da machamba.

A estratégia de desenvolvimento da agricultura baseia-se na procura de investimento estrangeiro na agricultura intensiva para exportação. O Estado declara-se como garantia do acesso à terra dos agricultores do sector familiar com vista a assegurar a agricultura de subsistência exercida maioritariamente por mulheres em terras marginais.

Com esta finalidade o Governo lança-se num processo de reforma da Lei das Terras, onde o Estado reivindica o seu papel de proprietário da terra declinando o direito de uso e aproveitamento para nacionais e estrangeiros através de concessões das antigas machambas estatais e do reconhecimento da ocupação, para as comunidades locais, com uma força de lei idêntica ao título de uso e aproveitamento. É de salientar que paralelamente à lei em questão, as comunidades continuam a reger-se pelas normas costumeiras, que no processo vêm sofrendo modificações diversas devido ao seu carácter dinâmico, de adaptação às condições existentes. No entanto, conservam na sua maioria as práticas discriminatórias da mulher no controlo do recurso.

Durante todo o processo de discussão da lei e muito especificamente durante a Conferência Nacional realizada para o efeito, a tendência para a privatização surge como principal caminho a seguir pelos apoiantes do mercado livre. Principal argumento: o Estado como proprietário da terra corta o direito individual de propriedade privada dos meios de produção. Esta tendência parece ser também a responsável pela contínua dilação da Assembleia da República em propor a sua discussão e posterior aprovação, à espera que a lei vigente permita concessões que tornem irreversível o processo de despejo dos camponeses das suas terras.

Paradoxalmente, a garantia do acesso à terra para a grande maioria do povo moçambicano é a garantia da paz e o povo moçambicano defende a Paz tão desejada porque ainda tem a terra. Isto não é suficientemente valorizado pela economia de mercado, nem é tido em conta nos indicadores económicos nem como potencial para um desenvolvimento mais justo. Possivelmente esse aspecto não entra também na análise do nível da pobreza, porque então seriam outros os níveis de pobreza (um salário mínimo não compra o produto mensal duma machamba de subsistência). Isto foi compreendido pelas mulheres envolvidas na discussão do anteprojecto de Lei das Terras de Janeiro de 1995 e, ao invés de travarem lutas isoladas pela eliminação das diferentes discriminações a que se veêm submetidas como produtoras, decidiram unir-se pela conservação do acesso à terra para as gerações vindouras, e na procura de regulamentos e mecanismos na nova lei, que permitam o diálogo com as diversas normas costumeiras para um futuro reconhecimento de seu papel pela sociedade.

A privatização da terra traria consigo a perda do direito à terra de homens e mulheres desprovidos de meios para competir no mercado. Representaria por sua vez a perda da estabilidade social, cultural e de alternativas justas de subsistência da maioria do povo Moçambicano. Significaria a perda da paz alcançada com tantos sacrifícios do mesmo povo e a negação, uma vez mais, na história da humanidade, da possibilidade de retorno a uma sociedade solidária.
 


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